Aquela vez que o Coringa leu Foucault... Ou Poker Face!
O Coringa é sem dúvida o mais icônico vilão das histórias em quadrinhos. Até quem nunca leu uma revista em quadrinhos sabe quem é o Coringa. Só que existiram vários Coringas. Ou pelo menos várias interpretações do personagem ao longo dos seus 75 anos de história.
Em 1940s o Coringa foi criado como um vilão de uma história só. Ele não era engraçado; era apenas um homicida com seu "gás do riso" que deixava a vítima com a mesma cara de gárgula risonho dele. Mas os fãs adoraram, e ele voltou várias vezes.
Em 1960s, o Coringa se tornou engraçado, porém deixou de ser assassino. Seus esquemas eram apenas tretar com Batman e ganhar dinheiro.
A partir de 1980s, o Coringa se torna um homicida psicótico e seu principal objetivo é tretar com o Batman.
Com uma história tão explorada, o personagem começou a incorporar vários arquétipos relacionados com sua imagem. Em 1988, Alan Moore explorou pela primeira vez a origem do Coringa, em "A Piada Mortal". A história segue uma premissa simples: O Coringa quer provar que seres humanos comuns não são diferentes dele. Ele não é uma aberração. Ele então aleija a filha do Comissário de Polícia e o sequestra, tentando enlouquecê-lo e provar que "tudo que precisa para reduzir o mais são dos homens a um lunático é um dia ruim. Essa é a distância entre o mundo e eu. Um dia ruim.".
Batman, cuja sanidade é bem questionável, faz questão de frisar que apesar das tentativas do Coringa, o Comissário permanece perfeitamente são; e que pessoas comuns não quebram tão fácil. Que talvez a fraqueza seja apenas do Coringa. Isso é importante, porque não apenas o Batman, como até mesmo outros vilões buscam se distanciar do Coringa. "Quando um vilão quer assustar outro, ele conta histórias do Coringa" disse um dos inimigos do Flash certa vez. É importante notar também que na mesma história, A Piada Mortal, o Coringa sabe que o Batman não é burro e que sua própria experiência de vida deve ter mostrado a futilidade de tudo que ele faz. Mesmo assim, Batman não dá ouvidos; ele faz de tudo para se distanciar do Coringa. Não há diálogo entre a razão e a insanidade.
Em "Asilo Arkham uma Séria Casa em um Sério Mundo", estória lançada um ano depois da Piada Mortal, em 1989 por Grant Morrison, ocorre o contrário; Batman receia adentrar o Asilo tomado por internos porque "Quando passar pelas portas do Hospício, tenho medo que a sensação seja de voltar para casa". No final, Batman só consegue vencer quando se entrega à loucura e ao inconsciente, ao arquetípico. Nessa história, Batman dialoga com a loucura.
As duas histórias mostram duas atitudes opostas em relação à loucura. A segunda história até mesmo levanta a possibilidade de que o Coringa NÃO seja louco.
"De fato, não estamos certos sequer de que ele possa ser definido como louco... Estamos começando a pensar que possa ser uma desordem neurológica, similar a síndrome de Tourette. É bem possível que estejamos vendo um caso de SUPER-SANIDADE. Uma brilhante e nova modificação da percepção humana. Mais adaptada à vida urbana do fim do século vinte. Diferente de você e eu, o Coringa não tem controle sobre a informação sensorial que recebe do mundo exterior. Ele só pode cooperar com o fluxo caótico fluindo com isso. É por isso que algumas vezes é um palhaço brincalhão, outros um assassino psicótico. Ele não tem personalidade real. Ele se recria a cada dia. Ele se ve como Senhor do Desgoverno, e o mundo como o Teatro do Absurdo."
— Diagnóstico de uma médica em "Asilo Arkham: Uma Séria Casa em um Sério Mundo" por Grant Morrison.
Em apenas algumas linhas, Morrison reconciliou todas as interpretações do Coringa em algo canônico, e descartou mudanças editoriais e fatores do "mundo real" dando uma razão para as mudanças no personagem, sua própria essência, assimilando os vários arquétipos que compõem sua imagem.
Mesmo as nuances homoeróticas que o Coringa exibe em relação ao Batman em "Cavaleiro das Trevas" de Frank Miller podem ser explicadas como uma forma de desestabilizar o Batman; sua fase "palhaço" pode ser racionalizada como um artista performático tentando passar uma mensagem, e ninguém "pega a piada."
Morrison aqui parece ter tido direta ou indiretamente uma influência de Michel Foucault. Foucault escreveu "Loucura e Civilização: Uma História de Insanidade na Era da Razão" que corretamente explica o relacionamento complexo entre razão e loucura no Oriente desde a Antiguidade até a Renascença... Até 1700s. Foucault escreve que "o homem moderno não se comunica mais com o louco". Na Renascença, assim como na Antiguidade como explicado por Sócrates e Plutarco, loucura era uma forma de conhecimento transcendente, que ensinava ao homem sobre a fera interior e revelava o quão pouco o homem tem de controle sobre seu coração. Profetas e Oráculos são tomados pela "loucura divina" e desligados da razão e auto governo, se tornam megafone dos Deuses. Porém, isso era visto como a sacralidade de um fenômeno excepcional; os leitores de Foucault, senão o próprio, acabaram querendo fazer da exceção uma regra e o mundo enlouqueceu. Sem o parâmetro da Razão, não sobra ninguém para "receber a mensagem".
O mundo Moderno, séc.XVII em diante, inaugurou o silêncio da loucura com a especialização de confinamento e tratamentos aos loucos no Hospital Geral de Paris em 1656. Foi o início dos Hospícios. A modernidade percebe a loucura como o apogeu da inutilidade. Loucura se tornou o anátema na época da Razão e Iluminismo, e foi banida para outra dimensão... Os Hospício. A loucura passou a ser considerada uma vergonha, um escândalo imoral da razão. Não era mais um sinal do além, nem uma relação do homem com sua animalidade. Loucura não apontava mais para o "não-ser" que ameaçava engolir o homem nas trevas. A Loucura se tornou um problema sanitário. Tratada como se fosse uma mera doença sem nenhuma "verdade oculta" a ser revelada, e pior ainda, contagiante.
A importância da Loucura, é ser um contraponto para a Razão; ela é como o artista performático, que nos afronta e exige que revejamos nossa razão para que possamos justificá-la diante da loucura. O bobo da corte da Idade Média era a única figura que podia "olhar o rei de frente e apontar suas falhas" sem ser punido. Afinal, era louco. Não tinha responsabilidade pelo que dizia. Todavia o Rei poderia muito bem ponderar sobre o que foi dito. No pós-modernismo de Focault, porém, todo mundo resolveu ser louco, e então a loucura perdeu sua razão de ser.
A imagem do Coringa reúne quatro arquétipos com pouca diferenças entre si, no entanto há diferenças: O Palhaço, O Bobo da Corte, o Louco e o Trapaceiro. Arquétipos são mais famosos pela explicação de Jung, entretanto eu prefiro associá-los às Formas de Platão. Instintos transportam uma informação instantânea até a mente consciente, de forma que ela reconheça de qual Forma aquela informação "participa" e reaja de acordo. Símbolos fazem a mesma coisa, transmitem uma mensagem e transportam ela ao reconhecimento imediato de várias camadas.
O Palhaço é o ser humano que tenta e sempre falha pateticamente. Ele nos encoraja a rirmos de nós mesmos. Ele não precisa de palavras, Chaplin por exemplo mostrou o ridículo dos tempos modernos totalmente através de mímica. O Palhaço coloca uma máscara do ridículo com a qual pode cortar através de todas as camadas sociais e revelar nossa hipocrisia de uma forma socialmente aceitável. Rimos do Palhaço porque ele não é a gente, e ao mesmo tempo, ele é a gente.
O Bobo da Corte é o cínico. Tem a precisa função de criticar, principalmente com cinismo. Eles floresceram na Idade Média porque, como eu disse antes, podiam dizer na cara do Rei o que ninguém mais se atreveria. Era uma espécie de consultor cuja autoridade não era oficial. Ele é o "memento mori" do Rei, um inimigo natural do ego super inflado. Seu chapéu com pontas de sinos e sua roupa de cores contrastantes verde e vermelho, garantiam a segurança de que se fosse dito algo inapropriado, isso era mera brincadeira. Mas os bobos da corte sempre foram tidos em altíssima estima pelos Reis. Eles eram vistos como a forma estatizada da "loucura divina". Para alguém cercado de puxa-sacos e falsidade, era muito importante ter um amigo capaz de dizer a verdade na sua cara. Bobos da Corte atuavam até como médicos. Quando tratando uma doença, os médicos medievais tratavam os temperamentos, colérico, melancólico, fleumático e sanguíneo. O poder da risada era considerado medicinal. Nietzche pode ser visto também como uma espécie de Bobo da Corte, de "Louco Cínico". Todos dizem que ele falou "Deus está morto". Mas a frase completa é: "Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos. Como iremos confortar a nós mesmos, os assassinos de todos os assassinos?"
— Die fröhliche Wissenschaft
O que ele diz cinicamente aqui é que o declínio da religião, o crescente ateísmo, e a ausência de uma autoridade moral superior lançariam o mundo ao Caos.
O Louco sagrado é aquele que tenta caminhos não caminhados. É o destruidor do status quo; é a contraparte dos loucos tolos. Os loucos tolos governam o mundo, o louco sagrado destrói essa percepção de mundo se reinventando. Por isso ele é o Arcano Zero do Tarot; é o recomeço, a tabula rasa. Ele usa de métodos subversivos para destruir a sociedade por dentro e dar reboot.
O Trapaceiro, como Loki na mitologia nórdica ou o Coiote na nativo-americana, é uma figura amoral. Para ele não existe o bem ou o mal; ele é a força de oposição. É a figura cujo apetite e sentidos dominam suas ações e decisões. Ele frequentemente muda de sexo, muda de papéis, e até de forma. O Trapaceiro mostra como nossa ordem social é fluída, e não rígida como pensamos, e que a realidade material é um fluxo de mudança constante, e inconstância. Ele tem a específica função de se revoltar contra a autoridade e mostrar uma ordem superior que a autoridade vigente erroneamente identifica como caos.
O Coringa então abraça todos esses arquétipos; ele é o contador de "verdades" em um mundo de "mentiras". Porém o que o Coringa está dizendo é verdade? Sua percepção da realidade é "real"?
Não. Pelo menos não o Coringa de Alan Moore. O Coringa pode adotar em sua imagem, ou melhor, os autores incorporam nele, os arquétipos que expliquei, contudo não se pode fugir do ponto que o personagem não é um ser sobrenatural, é um ser humano. Sua visão de mundo é construída em cima de seus fracassos; nesse sentido sua visão é extremamente pessimista, embora o Coringa não é um Niilista, já que acredita totalmente em seu credo e tenta promovê-lo à sociedade.
Nesse caso, temos um exemplo na vida real que adota a mesma filosofia ou ideologia do Coringa... Lady Gaga. O Coringa se tornou símbolo de um contínuo processo de renascimento e reinvenção para se adaptar ao mundo ao redor, todavia ele faz questão de mostrar ao mundo que o processo é DOLOROSO. A identidade dele não é fixa... Pode recriar à vontade, SER O QUE ELE QUISER. No entanto, ainda está preso à sua essencialidade. Essa é uma forma de vida muito divulgada hoje em dia, a de que você pode ser o que você quiser.Aqui vemos de novo a influência de Focault de que "identidade é nada mais do que práticas repetidas muitas vezes". A noção de "identidade como uma construção social" vem de Focault. Para não encarar a realidade, o Coringa adota uma série de "personas" adaptadas ao meio, mas de forma extremamente agressiva porque ele é consciente desse "auto sacrifício" e o ressente. Profundo demais para um personagem bidimensional? Veja Lady Gaga.
Lady Gaga diz que seu objetivo como artista é "Que as pessoas do Universo, sejam meus fãs ou não, essencialmente me usem como válvula de escape. Eu sou o bobo da corte do Reino. Eu sou a ROTA DE FUGA. Eu sou a desculpa para que explore sua identidade."
— Entrevista para a revista Vogue em Fevereiro de 2011.
Como artista performática, Gaga é até mais bem sucedida nessa tarefa que sua inspiração, Madonna. Lady Gaga é uma processão contínua de nascimento e renascimento de visuais, de identidades, ela É um personagem de performance, uma completa fabricação com total liberdade de reinventar sua identidade. Ela pode dizer algo hoje e logo em seguida contradizer. Não há uma "verdadeira" Lady Gaga. Ela manipula sua fama de modo que incite a audiência a construir suas novas identidades, entretanto ao mesmo tempo existe em um vácuo de identidade. Quem é a verdadeira Lady Gaga... Stefani Joanne Angelina Germanotta, a cantora, atriz, compositora e produtora musical?
Ninguém sabe. Ela foi soterrada por uma criação midiática para a qual a própri diz "vendi minha alma em troca da fama". Ela pode fazer músicas muito melhores do que as que faz; toca inúmeros instrumentos; Não é nenhuma ignorante e várias vezes mostrou ser consciente das contradições nas causas nas quais é ativista. Embora se reinventou para o mundo da única forma que ela poderia cooperar com o mundo, na visão dela. O Coringa é a mesma coisa. Ninguém sabe quem é a identidade verdadeira do Coringa nos quadrinhos. Apenas sabemos que é alguém que não suportaria a realidade, e precisou inventar o Coringa, mas o rancor nas suas ações mostra a essencialidade daquele ser humano que foi sufocado e abatido. Lady Gaga escolheu um nome que significa literalmente "Dama Cocô" e seu primeiro grande sucesso foi Poker Face. Ela cria uma legião de "pequenos monstros" que querem ser a Lady Gaga, mas ela não quer ser a Lady Gaga... Ela acredita que não teve escolha. O Coringa é a mesma coisa. Um é Foucault aplicado na ficção e o outro na realidade.
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