Um resgate de uma questão interessante, "porque as pessoas que mais reclamam da vida tem menos motivos pra isso, enquanto que aqueles que pegam na enxada raramente reclamam da vida". É bem comum nesse ponto que alguém culpe o niilismo, o que eu parcialmente concordo, principalmente entre adolescentes, que perdem pouco e acham uma tragédia, que merecem ser chacoalhados no que realmente importa, mas acredito que possa ser perigoso se aceita de primeira pelos demais como uma colocação universal, porque pode ser simplista em torno da questão, e generalizadora, do "bom homem do campo" que supervaloriza as raízes do trabalho duro, apesar de nossas realizações que nos tiram da simples condição animal terem sido feitas por aqueles que mais reclamavam da vida aparentemente sem motivo, os filósofos, os sonhadores, os malucos. Assim sendo, este é um raciocínio que veio por ventura, mas em defesa daqueles que reclamam da vida, e o porque Deus nos quer exatamente assim.
Tem uma história do Grant Morrison, onde ele lida com metaficção. Na história, o Coyote, aquele do Papa-Léguas, adquire autoconsciência e se cansa de viver em um mundo cheio de violência sem sentido. O que o Coyote não sabe, é que a violência do mundo dele tem um sentido... Ela serve para nos divertir, a audiência, é a válvula de escape para nossas próprias tendências violentas e ironizar nossas falhas. Porém ele não sabe disso, e então, resolve ir falar com Deus... O criador. O coyote pega um elevador e vai falar com Deus.
Chegando lá, Deus, um imenso pincel de desenhista, atende o pedido do Coyote e o retira de seu mundo de violência sem sentido e o envia para o NOSSO mundo... Onde o Coyote, assim que chega, é atropelado por um caminhão. O motorista, logicamente assustado, continua dirigindo e não vê que o "lobisomem" que ele atropelou não está morto, ele se regenera. Contudo se regenera com uma dor incomensurável, porque neste mundo, diferente do mundo de desenho animado do Coyote, nós temos CONSEQUÊNCIA. Apesar de imortal, o Coyote sente a dor dos ferimentos, uma consequência da lei da física que seu mundo original ingenuamente ignora.
No entanto em um mundo tão violento quanto o seu mundo original, porém consequente, procura através de sua autoconsciência, dar sentido a isso. Este é um ponto central da história, ninguém sabe o que está acontecendo. O Coyote não sabe porque ele foi transportado para este novo mundo, e o motorista que o atropelou não sabe o que o Coyote é. Depois, esse motorista passa por uma série de desgraças, as quais ele culpa o "Diabo" que ele atropelou no deserto. Obviamente o Coyote é um tipo de demônio estranho lançado em nosso mundo, mas ele não tem nenhuma ligação direta com o sofrimento do Caminhoneiro. As tragédias apenas mostram-se ser frutos da natureza deste mundo consequencial no qual vivemos, um mundo diferente daquele mundo sem consequência, mas também aparentemente sem sentido do Coyote.
Agora vendo que ESTE mundo DEVE ter um sentido, afinal é consequente, o agora autoconsciente Coyote busca um sentido. O motorista resolveu dar sentido a seu sofrimento culpando o Coyote. O Coyote na parte mais polêmica da história, resolve escrever seu próprio evangelho; ele chegou a conclusão de que foi escolhido por Deus para sofrer neste mundo de consequências para salvar todos seus amigos desenhos-animados de seu mundo inconsequente. Quando vemos esse evangelho, não conseguimos entender nada, afinal o Coyote não sabe escrever. São tudo garranchos.
O Coyote é o personagem mais triste de toda a história, simplesmente porque ele é o mais autoconsciente. Um estranho em uma terra estranha, separado de todos por ter uma percepção de um mundo maior que é incapaz de expressar corretamente aos que o cercam.
Porém, ao mesmo tempo, o conhecimento dele é incompleto. Deus apenas atendeu seu pedido, o retirou de um mundo inconsequente para um mundo consequente. Mas o Coyote é levado, pela própria consequência do mundo, a tentar dar um sentido a sua situação. Ele acredita que morre e se regenera infinitamente para salvar seus amigos desenhos, que sofrem unicamente pelo capricho e vontade de seu Criador. Ele pensa que está se "revoltando" contra o "Deus Tirano" e que se sofrer seus caprichos no lugar de seus companheiros, fará um mundo melhor. Ele não sabe que este sofrimento, na verdade, faz parte de um SISTEMA maior (mantém a NOSSA sanidade, em nosso mundo) e que a participação dele nisto independe de seu livre arbítrio, apesar que o Coyote acaba conscientemente escolhendo este papel, e que seu Deus não é um "Tirano"; na verdade, ele apenas está atendendo aos DESEJOS DO COYOTE. Ele não ve além da "quarta dimensão", não sabe sobre nós, leitores; não sabe que seu sofrimento só existe para ensinar algo a NÓS, que estamos lendo, e não para si mesmo. No final da história, o motorista reencontra o Coyote, e atira nele com uma bala de prata feita de um crucifixo derretido; e o Coyote morre. Mas nós, os leitores, sabemos que o Coyote morreu não por causa do tiro nem da bala, e sim porque seu Criador teve misericórdia dele; ou talvez, ele havia cumprido seu propósito.
A Autoconsciência é o fator determinante da história. Todos os personagens vivem na busca pelo SENTIDO, como consequência natural de um mundo feito de CONSEQUÊNCIAS. A simples resposta, é que esta é a natureza deste mundo; porém a consciência de OUTROS MUNDOS faz com que o Coyote e o motorista busquem um sentido além, que não necessariamente se aplicam ao mundo em que vivem. O Coyote foi capaz de perceber isto em seu mundo original, e a partir deste momento já não fazia mais parte daquele mundo. Ao chegar em nosso mundo, ele já está buscando por um sentido que já não é parte deste, contudo de outra realidade maior. Apesar do mundo moderno ser altamente NIILISTA, por ignorar a realidade de outros mundos e, portanto, não buscar o sentido, ao mesmo tempo o sentido nos leva a outros níveis de percepção que não necessariamente podem mais serem vistos dentro da natureza DESTE mundo. Resumindo: Lida-se com o que é espiritual como espiritual, e o que é material como material. No entanto, as vezes, nossa incompreensão e necessidade de sentido nos faz ignorar a natureza destas coisas, e trocar seus sentidos. O fato da dor do Coyote apenas ser dor não significa que não tinha um sentido na ordem maior; todavia também não significa que este sentido fizesse ou faria alguma diferença pra ele.
Pode-se dizer que sua autoconsciência não fez diferença pra ele, que saiu de um mundo sem sentido pra viver a MESMA coisa em outro mundo com sentido. Porém o fato é, ele era autoconsciente. O preço do conhecimento, como já dizia a Bíblia, é lidar com o horror da realidade, contudo também ter sua necessidade atendida... "Ser como os deuses', mas com um preço, a da solidão e estranheza, como a do Coyote perdido em nosso mundo. Pessoas simples, que apenas vivem no automático, reclamam menos da vida porque elas NÃO QUESTIONAM, elas não PENSAM o suficiente na vida pra reclamarem dela. Vivem em um mundo simples (a ignorância é uma benção), entretanto não mais fácil só por isso; é um mundo extremamente difícil, porém para o qual são perfeitamente adaptados. No entanto, até que ponto há sentido no que fazem, além de meramente sobreviver, também é algo que jamais lhes passa pela cabeça. São atendidos em sua simplicidade, mas ao mesmo tempo perdem muitas coisas que ignoram. Para alguém autoconsciente isso já não é mais o suficiente, já está adaptado a outra realidade, que também não é fácil e tem seus desafios próprios.
Aqueles que tem autoconsciência, sofrem por ver algo melhor, ou SENTIR que poderia ser melhor ou diferente, e serem incapazes de expressarem isto ou devidamente serem compreendidos. Possuem a oportunidade de realizarem suas visões, só que perdem todo o contato com seu próximo. Sofrimento é algo extremamente subjetivo, aquele que se encontra solitário em sua consciência pode sofrer muito mais do que aquele que vive em uma cama, mas é ignorante de tudo que está perdendo lá fora. Por outro lado, a autoconsciência pode ser vista como estar em uma cama ao lado de vários pacientes que acreditam que o Hospital é tudo que há, e somente ele sabe o que mais está perdendo. E o pior de tudo, nada disso faz diferença, a não ser subjetivamente. Sua situação não vai ser melhor nem pior, apenas vai atender um desejo interno, uma necessidade nascida de sua própria natureza consciente. E seu Criador bem sabe que o Criou assim, e que isso deve servir a algum propósito, que não é de nossa conta, porém pro qual somos necessários; o máximo que podemos esperar é atender as necessidades que nossa autoconsciência exige de nós enquanto tentamos nos harmonizar com as necessidades da natureza da criação, para qual nossa natureza, e autoconsciência rebelde, foi criada.
No fim, isto também é fé.
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