domingo, 9 de março de 2025

Pseudo-Filosofagem: Homem Aranha

Isso é talvez algo vindo do absoluto nada, mas estarei tomando uma pausa de uma semana das traduções do blog. Sinceramente já vão 5 anos de trabalho e, apesar de termos algumas pausas regulares, dificilmente são para um descanso mental real do trabalho de tradução em si. Tendo isso em vista, também queria explorar um tipo de conteúdo diferente pro blog, ainda que não pretendo torná-lo frequente, será uma válvula de escape pra rotina em que eu mesmo me enfiei e uma forma de dar asas a minha loucura. Sendo assim, se você é um fã de quadrinhos, pseudo-filosofagem safada, e um apreciador de curiosidades... Sente-se, tome um café e aproveite a viagem!

Há uma coisa que gosto de fazer com alguns conhecidos próximos, que é usar Ficção (em sua maior parte quadrinhos) como um meio de popularizar Filosofia. Dá pra se analisar questões profundas com quadrinhos, e para exemplificar isso vou usar o Homem-Aranha para explicar porque ele se sabota, e o que há por trás disso.

Todo mundo sabe quem é o Homem-Aranha; uma Aranha geneticamente modificada pica um estudante e lhe concede superpoderes. Esse estudante passa a indulgir em seus poderes, e em sua recusa de prender um ladrão, acaba resultando na morte do seu pai adotivo, o Tio Ben. E assim o estudante aprende que "Com grandes poderes vem grandes responsabilidades" e jura nunca mais permitir que alguém se machuque por sua negligência.

É uma história que tem ressonância emocional, que ilustra responsabilidade através de poder e drama. Mas faz sentido?

O ponto central da Filosofia é fazer as perguntas que ninguém faz. Não para derrubar o que foi dito, mas para entender melhor, e ver se aquilo que foi dito realmente tem sentido ou não.

Responsabilidade é um conceito ético. Professores são responsáveis por alunos, médicos por pacientes, pais pelos filhos. Há uma conexão com poder e responsabilidade. Em todos esses casos, o indivíduo em questão tem um poder maior do que aqueles sobre os quais é responsável.

Até aí, tudo bem. Cada um desses assumiu um papel que vem intrinsicamente com essa responsabilidade. O problema do Homem-Aranha, porém, é que ele ajuda ESTRANHOS, pessoas que não o procuram por ajuda e pelas quais não tem nenhuma relação especial; pessoas que até o odeiam e tem medo dele. Temos responsabilidade com quem não temos qualquer relação?

O Homem-Aranha é a primeira vista, o herói mais "Cristão" de todos. Não apenas ele é um Deontologista... A Filosofia moral de fazer a coisa "certa"... Como se encaixa no conto do Bom Samaritano. A parábola do Bom Samaritano tem a moral de que qualquer um pode e deve voluntariamente socorrer a um estranho.

Contudo Filosoficamente, esse paradigma de dever implica que a pessoa em perigo só tem uma chance de sobrevivência, que depende da ação de um agente especial que não tem nenhuma relação com ele, a não ser o fato (acidental) de estar presente no momento do perigo. Você tem o poder de evitar a morte ou sofrimento dele, e isso te torna responsável a partir do momento que faz a escolha de ajudar ou não. Perceba que Bom Samaritano é diferente de CARIDADE, pois aqueles que recebem caridade nem sempre estão em perigo imediato, e sim crônico. A pessoa que mora na rua não vai morrer se você não der o dinheiro pra ela AGORA, no entanto uma criança se afogando vai morrer se você não saltar na água.

A questão com o Samaritanismo não é que podemos ou não ajudar; é que  implica DEVER. E Dever implica uma coisa mais forte, que seríamos moralmente deficientes ou culpáveis se não ajudarmos. Por exemplo, no caso de caridade, se uma pessoa de rua me pede dinheiro, seria legal de minha parte lhe dar, todavia não sou OBRIGADO a isso. É moralmente permissível que eu tente lhe ajudar de outra forma. Porém, não é moralmente permissível que eu roube dele o dinheiro que já lhe deram. Ou seja ajudá-lo é um dever positivo, uma SUGESTÃO, e não roubá-lo é um dever negativo, uma OBRIGAÇÃO.

Como sociedade, podemos negligenciar nossos deveres positivos de alguma forma, mas não nossos deveres negativos, pois estes possuem um impacto maior. O Homem-Aranha ajudar as pessoas que ele encontra com seu poder é claramente uma obrigação moral. Contudo IR ATRÁS DE PESSOAS COM PROBLEMAS, não é. Ele poderia ter centenas de outras formas de ajudá-los sem precisar arriscar a própria vida, em vista que seus problemas são crônicos e não imediatos.

Por que ele procura pessoas com problemas para ajudar? Culpa. Ele quer evitar que aconteça de novo o que aconteceu com o Tio Ben. Isso é besteira, pelo simples fato de que VAI acontecer de novo, em algum lugar do mundo, exista ou não um Homem-Aranha. Ele pode ajudar os que encontrar, no entanto começar a PROCURAR essas pessoas, estará condenado ao fracasso.

Vamos ver a culpa do Homem-Aranha. Diferente do Batman, que perdeu os pais quando criança, e não podia fazer nada, o Homem-Aranha é culpado da morte do tio Ben, porque podia evitar e não o fez. Entretanto diferente do Batman, que nunca conseguiu prender o assassino dos pais, o Homem-Aranha o prendeu na mesma noite. Então quando vai ter terminado de pagar seu débito com o tio Ben?

Nunca. Enquanto tiver poderes, ele se sentirá culpado. Esse tipo de culpa irradicável é uma filosofia Cristã. É baseada no débito que as pessoas tem com Deus. Peter Parker, o Homem-Aranha, devia tudo aos seus tios, e em um ato de transgressão, seu pecado original, perdeu o Paraíso. Essa noção de "débito infinito" foi tratada por Anselmo de Canterbury (1103-1109) um pensador Medieval que escreveu sobre a teologia da Penitência. Em sua defesa da Cristandade, ele diz o seguinte:

1 - Como criaturas caídas, o ser humano ou pode buscar Justiça ou Felicidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.
2 - Escolher primeiro a felicidade pessoal foi o que fez a humanidade e os anjos caídos falharem com Deus e isto os coloca em débito infinito com Deus que deve ser reparado.
3 - Porém dar a Deus o que lhe é devido é o primeiro dever, e portanto isso jamais poderia reparar a transgressão inicial, pois é nada mais que a obrigação, e portanto somente Deus poderia absolver a humanidade dos próprios pecados, daí a necessidade da Paixão de Cristo, porque apenas ele poderia fazer MAIS do que exigido dele. Isso é a base da Deontologia e do "fazer o certo porque é o certo".

O problema dos Filósofos Clássicos com isso são dois:

1 - Isso depende totalmente da narrativa Bíblica; então para acreditar que se tem esse débito, a pessoa precisa aceitar completamente a narrativa de Gênesis e o pecado original.
2 - Fazer Justiça não implicaria também, ser justo consigo mesmo? Garantir a própria felicidade não seria fazer justiça a si mesmo também, como a todas as outras coisas?

O Homem-Aranha é o mais Deontológico e Cristão dos personagens por esse motivo... Nunca entra nesse questionamento. Ele totalmente abraça a crença de que  tem o dever de buscar Justiça para os OUTROS antes da própria felicidade, movido pela culpa de seu pecado original.

Ao fazê-lo, porém, negligencia vários pontos importantes não apenas da sua própria vida, como a de seus entes queridos. Ele nunca tem tempo pra Tia May, a velhinha viúva que o criou; ele nunca tem tempo pra sua namorada, Mary Jane; ele não tem tempo para seus amigos, a quem nunca explica seus desaparecimentos. Ajudar a si mesmo, digamos, sendo rico com suas invenções como a fibra sintética da teia, não ajudaria a Tia May, Mary Jane, e o próprio Peter e não seria uma forma de honrar o Tio Ben, que tanto trabalhou por eles, se é isso que ele quer fazer? Poderia. De fato, poderia ser um combatente do crime mais eficiente até, se trabalhasse em conjunto com as forças policiais.

Aí que entra a culpa irracional. A culpa irracional é o que sabota o Homem-Aranha; e eu chamo de irracional porque ele está se culpando não por não ter detido o bandido, como ele pensa, mas POR NÃO TER PREVISTO O FUTURO, o que é besteira, já que ninguém poderia. Se ele SOUBESSE que o bandido NÃO mataria o Tio Ben, ele o deteria?

Fazer algo para alguém que amamos e depois dizer "pronto, paguei meu débito de amor" pareceria frio; e é pelo julgamento de Peter Parker ser EMOCIONAL e não RACIONAL que jamais conseguiria fazer isso. 

Pois se a Deontologia for verdadeira, o único modo de pagar o débito com o Tio Ben e seu "pecado original" seria o Aranha dar a própria vida. E é o que ele faz. Não apenas no sentido literal, como no sentido de destruir DELIBERADAMENTE tudo que pode constituir "sua própria vida", como relacionamentos, felicidade, emprego, sucesso, etc. É por esse motivo que se sabota. Ele não se vê no direito de ter essas coisas.

Se você deve pra todo mundo, inclusive quem você nunca encontrou, então como vai pagar para as pessoas que prejudica enquanto você está pagando aos outros? O Homem-Aranha sempre vai ferrar um lado enquanto ajudando o outro, isso é auto sabotagem.

Na tradição Platônica, por exemplo, ou Filosofia Clássica, a questão não é culpa, e sim ética; isso significa encontrar nosso lugar na cadeia de seres, e então realizarmos nossa natureza plena, e o resto seguirá de acordo. Ao invés de neuroticamente tentar realizar o bem-estar e desejo dos outros, a pessoa desenvolve seu próprio compasso interior, seguro no conhecimento de que deste modo irá agir da melhor maneira que puder e apropriadamente em cada circunstância individual. Aliás, este é o modo correto que se deve ler o pronunciamento de Nietzsche de que "Deus está morto". Significa que ao invés de sacrificar o Eu, a "morte de Deus" no sentido Deontológico da Filosofia Moral quer dizer que estamos liberados do sacrifício, débito, sangue e suor... Podemos usar nossos dons da melhor maneira que quisermos. Isso não significa uma atitude imoral ou amoral, mas recuperar um set de valores superiores, de ser o melhor que você puder, sem culpa. Isso significa MAGNANIMIDADE, ou seja, grandeza da alma, reconhecer a própria grandeza e ajudar aqueles que o procuram, porém não sair por aí procurando quem precisa de ajuda.

No centro disto, está a seguinte ideia... O MELHOR MODO DE AGRADECER A DEUS POR UM DOM É POR ESSE DOM A UM BOM USO. Sim Aranha, você vingou a morte do seu tio, agora faça algo útil com esses dons, seja você mesmo, aproveite seus poderes, venda essas teias geniais que criou, e vá caçar algumas garotas pra dar continuidade ao nome Parker! Isso não seria desperdiçar os poderes, afinal o Homem-Aranha "também é filho de Deus". 

Contudo, se o Aranha aceitar Deontologia como uma realidade, isso é o que fará dele um "mito cristão moderno" em uma infinita busca por um débito que jamais poderá ser pago, o Cavaleiro do Graal. Então se o Aranha está correto ou não, depende do seu Paradigma, e qual Paradigma melhor descreve a realidade.

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