quarta-feira, 19 de março de 2025

Pseudo-Filosofagem: Capitão América

Aquela vez que o Capitão América enfrentou Aristóteles e ambos foram salvos pelos estoicos!

Parte do motivo pelo qual gosto desses posts são porque gosto de mostrar para a dita "Alta Cultura" como a cultura pop pode ser usada para explicar de forma mais simples e iniciativa a Filosofia para as crianças, jovens, e adultos. É relevante principalmente hoje quando as pessoas tomam posições binárias com frequência.

Uma vez, enfrentando uma versão de si mesmo na União Soviética, o Capitão América disse "Eu represento o Sonho Americano! Um sonho que tem pouco a ver com fronteiras, ideologias, e o tipo de ódio cego que seu tipo defende!" em outro momento, o Capitão foi oferecida a chance de concorrer à presidência, e ele recusou dizendo que "Eu represento o Sonho Americano, não apenas uma geração de Americanos.".

Os criadores do Capitão América foram dois judeus liberais: Joe Simon e Jack Kirby. O Capitão América foi um personagem "propaganda" criado durante a Segunda Guerra Mundial, mas seus criadores tinham uma visão de liberalismo americano que também foi a base da criação do personagem. Além disso o Capitão foi criado em Março de 1941, nove meses antes do Ataque à Pearl Harbor. Ou seja o Capitão América lutava na Segunda Guerra antes da América entrar oficialmente na Segunda Guerra.

O personagem parou de ser publicado após o fim da Guerra, porém foi reaproveitado durante a Guerra Fria em 1966.

O Capitão América é Steve Rogers, um estudante de artes magrelo de Nova Iorque que foi sujeitado a um experimento do exército americano chamado "Soro do Super Soldado". Tentando se alistar, todavia sendo rejeitado pelo seu físico frágil, Rogers concorda em se sujeitar ao experimento e quando é injetado com o soro especial e exposto a um tipo de radiação chamado de "vita-ray" o jovem magrelo adquire força e resistência sobre-humanas, contudo ele não é um Super-Homem; é um ser humano cujas capacidades físicas foram elevadas ao nível máximo.

Para seus criadores, o Capitão incorpora "os princípios atemporais de liberdade, igualdade, e justiça". O problema é que esses princípios são bem temporais. O Capitão é comentado nas HQs como se combinasse um patriotismo inclusivo que equilibra idealismo com pragmatismo. Como se seus princípios fossem universais. E essa é a grande falha do Capitão América: Ele simboliza que os ideais americanos se aplicam a todos, não apenas aos Americanos, mas a todos os povos ao redor do mundo. E esse é um problema fundamental do Liberalismo Americano: tratar os ideais Americanos Liberais como se fossem Valores Humanos Universais.

Quando falamos de virtudes morais, estamos falando realmente de Virtudes Éticas, um tipo de teoria de virtude moral que teve início com os Egípcios e passou para os Gregos como Platão, Aristóteles, e os Estoicos. Vou falar de Aristóteles porque além de seu livro sobre Virtudes ser o mais conhecido, o mundo Acadêmico deu ênfase em Aristóteles nesse assunto.

As virtudes do Capitão América são essencialmente seis: Coragem, Humildade, Indignação, Sacrifício e Perseverança... No entanto tem uma última característica no Capitão que é considerada uma virtude, e representa o "Sonho Americano" que é sua Inclusividade Patriótica. Essa não tem nada a ver com Aristóteles na forma que aparece em Capitão América, e é totalmente um produto histórico Americano Liberal. Não é "atemporal".

Em Aristóteles falta qualquer coisa que possa ser remotamente comparada ao moderno pensamento liberal que o Capitão incorpora. A começar pela ideia de autonomia pessoal. Aristóteles dizia que os indivíduos são responsáveis por suas ações; porém também dizia que nenhum homem é autor de sua própria vida. Mesmo os poucos favorecidos são restritos à sua própria essência ou possuem como única via de transcendência se modelarem na concepção de excelência humana.

A ideia de que uma boa vida pode existir em várias formas diferentes, com cada pessoa contendo algo peculiar e único, na Antiguidade era pensada em termos de essência, nunca de escolha. A noção do Capitão América de que se pode dar a cada indivíduo a liberdade de viver como quiserem, seria vista com incredulidade e absurdo.

Isso gera uma inerente contradição ao pensamento do Capitão América: Se um povo ESCOLHE viver em um regime ditatorial, o Capitão América concordaria com eles?

Não.

E como ele resolve isso em seu pensamento?

Simples. O Capitão também incorpora valores ocidentais Cristãos, especificamente o tipo de Cristianismo formado pelo Puritanismo Anglicano na fundação da América. Ele ve o mundo em conceitos de bem e mal.

Não existe o conceito de "MAL" na Antiguidade, e nem mesmo em virtudes. Sim, existem conceitos de estados de caráter considerados maus como imprudência e covardia, contudo isso não significa acreditar no Mal como uma força ativa no mundo.

Isso é um traço único do Monoteísmo, particularmente do Cristianismo que a América recebeu dos Puritanos. Por isso os valores do Capitão não são "universais e atemporais". Eles são altamente específicos. Sua visão de que o mundo é dividido entre o Bem e o Mal, por exemplo, é obviamente Maniqueísta. Porém Mani, o profeta iraniano, de quem Santo Agostinho foi seguidor, não sabia quem iria vencer no final, o Bem ou o Mal. O Capitão por outro lado, não tem a menor dúvida de que o Bem irá e deve vencer no final. Santo Agostinho acreditava que o Bem e o Mal não eram forças separadas, e que ambos corriam no coração de cada ser humano. Contudo o Cristianismo Puritano pensa diferente, e ve o mundo rigidamente em uma forma binária: Existem os bons (os salvos) e os maus (os condenados). E os bons estão destinados a vencer e os maus a falharem. É a coisa mais remotamente parecida com o essencialismo de Aristóteles, mas só que dividido em uma forma binária completamente estranha ao Mundo Antigo.

O Capitão América de fato só poderia surgir na América e em nenhum outro lugar do mundo. Essa visão religiosa do Capitão é mostrada nas HQs de forma secularizada, o que é irônico, porque as revistas evitam mencionar Religião para serem mais acessíveis a um público maior, todavia ao mesmo tempo exibem ideologias seculares sem nenhuma preocupação se vai contra ou à favor as ideologias particulares dos leitores. E não é apenas na mídia, isso é parte da deformação do mundo Acadêmico. Especialmente na Filosofia Contemporânea, mostrar qualquer interesse simpático à Religião é suicídio de carreira. Aristóteles de todos os Filósofos Éticos é o mais passível de "secularização" e por essa razão é favorecido pelo mundo Acadêmico no lugar de Platão, por exemplo. Mesmo essa secularização de Aristóteles é uma distorção. O Mundo Antigo Ético é completamente alien ao nosso mundo de Ética moderna. Completamente, e eu me refiro inclusive aos Tradicionalistas, que não sabem distinguir os pormenores da Ética Aristotélica da Ética Cristã Ocidental.

Os criadores do Capitão como mencionei, eram judeus, trabalhando para um público majoritariamente Cristão. A visão deles dos valores éticos Cristãos que eles secularizaram no Capitão América é rasa, superficial. Por exemplo, um traço marcante do Capitão é sua moral. Ele é considerado humilde, e nunca conta vantagem sobre suas capacidades. Para o Capitão, a América representa um país onde todos "nascem iguais". O que é absurdo; a América é o país mais sectarista do mundo moderno. Inclusive mais do que os regimes ditatoriais ao redor do mundo. Ser Americano é contar vantagem sobre seu sucesso. Não existe nada mais Americano que isso.

Para o mundo moderno, a Magnanimidade de Aristóteles sobre nunca duvidar de suas habilidades superiores e a ideia de que pessoas nascem com diferentes naturezas, é completamente alien para nosso mundo ético moderno. Aristóteles poderia aceitar um país onde o povo de bom grado se sujeita a um ditador, o Capitão e seus idealizadores, jamais. Entretanto se Aristóteles estivesse errado, os clubes de Masoquistas não fariam tanto sucesso. É bem claro que Humildade e Liberdade não são exatamente virtudes da Ética Clássica.

O problema então em falar de "virtudes atemporais" é que muitas virtudes não são atemporais. Prudência e Coragem são universais, embora o conceito de uma "boa vida" pode variar imensamente entre pessoas e povos. Foi percebendo isso que os Filósofos Éticos da Antiguidade separaram as Virtudes em Cardiais, e os Filósofos Cristãos em Cardiais e Teológicas.

Por exemplo, um cético ve sua capacidade de dúvida como uma virtude, enquanto que um crente ve seu salto de fé como uma virtude. Porém os Liberais Americanos pensam que todo ser humano nasce essencialmente um Liberal e se tornam outra coisa por acidente ou engano. A visão Liberal do Capitão beira o fanatismo incapaz de enxergar qualquer outra forma de vida diferente da sua.

Uma vez, enfrentando o Caveira Vermelha, o Capitão rejeitou a noção de que liberdade e igualdade universal sejam um mito:

"Um mito? Então a América em si é um mito... Como a liberdade, e justiça, e fé! Mitos pelos quais todos os homens desejam morrer e viver! É a tirania que é o mito, e preconceito que é uma abominação diante dos olhos da humanidade! É você que é o tolo, Caveira! Pois a humanidade há muito sabe disso... E enquanto o amor e não o ódio existir nos corações dos homens, a tirania não existirá!"

Sério? Todo e qualquer homem no mundo deseja morrer e viver por esses valores? Não necessariamente. E aí é que Aristóteles dá o golpe fatal no Capitão América. Quando Aristóteles fala de POLÍTICA, não está falando no sentido moderno da palavra. Para nós, Política é uma profissão ou função. Para os Antigos, Política envolve os vários aspectos da Pólis (reprodução, estabilidade, segurança, e a possibilidade de troca). Contudo apesar de que necessidade leva à formação da Pólis, ou cidade-estado, é a comunidade política que responde a algo mais fundamental na vida das pessoas. "Alguém não pode ser um ser humano exceto no contexto de uma pólis", como diz Aristóteles. Ou seja somos humanos no contexto em que somos definidos por nossa interação com outras pessoas; com diferentes tipos de pessoas. Um deus não precisa da Pólis e uma fera não tem uso nem apreciação disso. No entanto o homem mortal, que não é fera nem deus, vive no "meio" e por isso precisa de meios para se expressar, sejam esses companheirismo (philia), excelência (arête) e felicidade (eudaimonia). Apenas em sociedade o homem pode exercer e expressar estas coisas.

É por essa própria verdade que Aristóteles define o homem como um animal político. Sem uma sociedade desigual, o Capitão América não pode expressar o seu próprio ser. Todavia ao expressar o seu ser ele faz de modo a impedir que todos os outros seres o expressem. Ele iguala todos a si mesmo. A atitude política do Capitão não é exatamente política.

Eudaimonia significa satisfazer os desejos que são necessários para um homem viver uma vida plena, rica. Seja no sentido hedonista ou no sentido interior, de toda forma ele deve exercer sua essência em excelência, da forma mais construtiva para si. Pois uma pessoa que vive apenas para os desejos não seria racional, e felicidade não é apenas um sentimento, mas um modo de ser.

Arête é a excelência em FAZER alguma coisa, não simplesmente uma característica interna da alma. É como a excelência do carpinteiro em realizar sua função. É uma virtude que pode ser exercida apenas na desigualdade. Embora ainda que o Capitão fale da igualdade apenas de direitos, este nega o direito da pessoa de não exercer sua virtude essencial se for contrária às suas crenças.

Isso o Capitão América faz, quando exerce sua essência, a de um campeão liberal americano. Todavia ele não entende que aqueles que ele combate estão fazendo o mesmo. A sua visão de preto e branco é de fato, fundamentalmente, ingênua e mais do que tudo... PRECONCEITUOSA.

Isso porque ele não compreende a terceira virtude que une os homens... A philia (amizade). Amizade pode surgir na pólis por três formas: Utilidade, Prazer, e Virtude. A última, Virtude, é querer para alguém o que é bom para esse alguém, pelo próprio bem da pessoa e não o seu, e ser inclinado a permitir isso. Esse é o nível mais alto de amizade. Mas esse "fazer o que é bom para esse alguém" significa uma visão imparcial, de permitir essa pessoa exercer sua natureza.

Para que se possa ser feliz, é necessário ter excelentes amigos. É essencial.

Isso não é tão simples; principalmente quando as pessoas não compreendem sequer a sua própria natureza. O Capitão defende um mundo onde todo mundo pode ser o que quiser, "desde que não interfira com a vida do outro", porém isto não é verdade; mesmo quando de comum acordo, ele não permite que as pessoas vivam de forma contrária ao seu credo de "igualdade e liberdade". Em última instância, a função do Capitão América é transformar todos os seres vivos em Liberais Americanos por excelência; levar "a democracia" além das fronteiras Americanas. É por esse motivo que na batalha das Virtudes, Aristóteles derrota facilmente o Capitão América.

Como na figura que escolhi para o Texto deixa bem clara, o erro fatal que o Capitão... Ou melhor, seus escritores, não enxergam é que não basta você ficar firme naquilo que pensa que é certo. É necessário que você seja capaz de ver o que é errado. E isso nem sempre é uma coisa tão binária quanto parece.

E um exemplo disso é que também podemos ver nessa imagem acima, que o único ponto onde o Capitão concorda com os Estoicos, Platonistas, Agostinianos e Aritotélicos... E talvez o único ponto onde todos concordem entre si, é que ter uma firme posição naquilo que lhe é essencial não vai te salvar de tortura, aprisionamento, ou morte, mas vai salvar VOCÊ, te tornar uma boa pessoa, alguém que é você mesmo ao invés do que outros querem que seja ou te forçam a ser. É literalmente VOCÊ que será salvo, não seu corpo, sua propriedade, seu conforto, etc. Essas coisas NÃO SÃO VOCÊ, elas apenas ACONTECEM com você.

Ser uma pessoa virtuosa não é a mesma coisa que ser uma pessoa de sucesso na vida. Mas significa você ter, de fato, uma VIDA, no sentido de eudaimonia, o que é diferente de uma vida meramente estável e confortável.

A posição do Capitão não é realmente Estoica ou Virtuosa enquanto for "Foda-se você, eu estou certo". Essa analogia falharia, por exemplo, se tomada por pessoas que não estão em seu estado correto de mente como Pedófilos e Assassinos e Suicidas ou Traficantes e Marginais. Ela contradiz a própria visão de "Bem e Mal" do Capitão América, se o Bem para ele for simplesmente "foda-se você, eu estou certo e você está errado".

A síntese perfeita entre o pensamento Aristotélico e o "Capitão América" onde as coisas são divididas não em "Bem e Mal", mas níveis de diferença, ou seja ver as falhas nas pessoas, aceitar que elas vão agir da forma que agirão, e seguir em frente; independente da oposição possuir malícia, raiva, ou ultraje, a virtude do Estoicismo é ser simpático no sentido de entender estas diferentes naturezas, e escolher lados não em termos de tribalismo, mas resolver conflitos conforme o que for racionalmente melhor para todos seja se afastando do que não lhe serve, porém compreendendo a existência daquilo. Seria o exemplo do Estoico Epictetus em seu "Discursos", livro 1, discurso 2:

Priscus Helvidius também viu isso, e agiu de acordo. Pois quando Vespasiano ordenou que ele não fosse ao Senado, ele respondeu.

"Está em seu poder não me permitir ser um membro do Senado, mas enquanto eu for eu, eu devo ir."

"Bem, vá então." disse o Imperador. "Mas não diga nada."

"Não peçam minha opinião, e ficarei calado."

"Mas eu vou pedir sua opinião."

"Então eu vou responder o que penso ser o certo."

"Mas se você fizer isso, eu mandarei te matar."

"Quando eu disse que me tornei imortal? Faça sua parte e eu farei a minha: sua parte é matar, a minha é morrer, mas não com medo; a sua é me banir, a minha é ser banido com dignidade."

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